Apresentação crítica de Chrónicaçores: uma circum-navegação. De Timor a Macau, Austrália, Brasil, Bragança até aos Açores, de J. Chrys Chrystello. Prefácio de Daniel de Sá. Ponta Delgada, Ver Açor, Lda., 2009.
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Um verbo a conjugar : circum-navegar
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                                                       Absque sudore et labore nullum opus perfectum est
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        Se há livros que devem ser lidos e cuja releitura prodigaliza novos rumos hermenêuticos, defluindo de um redivivo “prazer do texto” que incessantemente se descobre, outros há que merecem ser estudados com denodo, como é o caso desta obra de J. Chrys Chrystello, cujo nome e sobrenome têm vindo a ser adulterados, “desde Chrysler a Christofle, Castelo, Crastelo, Perestrelo ou Costello consoante os países.” (2009: 192). Exemplo emblemático de multiculturalismo (de que CC é “confesso defensor”), claramente introduzido e firmado, em termos óbvios, pelo conceito de “circum-navegação”, Chrónicaçores é, verdade seja dita, uma obra plural e total, protagonizada por JC, alterónimo, quiçá, de CC - sua mulher, HC, “comentara, um dia, que o grande problema existencial de JC era saber qual dos dois venceria o duelo, ele ou o seu alter-ego.” (2009: 179) -, sempiterno viajante, por terras reais e reinos imaginários, e “castelão” ‘atrelado’ ao seu teclado informático, para o qual vai ditando os seus périplos à medida que, pela revivescência, se vai contando...
        A estrutura circular da obra em exegese é, a este respeito, dilucidativa: abalando dos Açores, onde se encontra radicado, JC ruma até ao Oriente, não sem convidar para tal romagem o seu fiel leitor, ambos findando a epopeia marítima - “De Timor a Macau, Austrália, Brasil, Bragança até aos Açores” - no Arquipélago de origem. Do Ocidente para o Oriente e do Oriente mítico para o Ocidente gerador de mitos, é-nos dado deparar com um JC jornalista e “last but not least” e escritor. A trajetória em pauta é forçosamente escandida pela alternância de tempos verbais - o presente, o perfeito e o imperfeito -, re-enviando para um antes e para um depois, delineando um ontem e um hoje, ora recuando ora avançando, socorrendo-se de analepses esclarecedoras e de almejadas prolepses (no que respeita ao leitor...) e configurando um vaivém temporal dinamicamente responsável pelo retrato sociopolítico de Portugal ao longo de, grosso modo, sessenta anos - “Voltemos de novo à matança do porco” (2009: 108); “Bom, voltando aos Açores, [...]” (2009: 111); “Voltando à Rádio Renascença e ao automobilismo” (2009: 244); “Voltando atrás no tempo [...]” (2009: 250); “[...] como veremos adiante [...]” (2009: 172). Fazendo jus ao rigor prescrito por todo e qualquer trabalho académico (mas que, nos dias de hoje, nem todo e qualquer trabalho académico detém...), valendo-se de uma ampla bibliografia caracterizadora da tese universitária e do ensaio científico, consultando uma documentação genuína, não raro de difícil acesso, destinada a evitar o papagueamento de falsas verdades geracionalmente repetidas e cristalizadas em dogmas indefetíveis, JC observa “por entre as espirais do fumo dos cigarros” (2009: 103), disseca, analisa, comenta e arquiva não só o universo circundante, mas também o seu ego, que tem a generosidade de desnudar:
“A vida passada só fazia sentido para o ego que fora mas já não era.” (2009: 20).
“Por ser quem fora se tornara naquilo que hoje era.” (2009: 45).
Paulatinamente vai esboçando o seu autorretrato de homem ateu e não agnóstico (conquanto nostálgico da fé dos tempos idos), obcecado pelo “politicamente (in)correto”, imbuído de desencanto - proveniente da quebra de ilusões e de rejeições sucessivas - perante a vida, propugnador de uma igualdade sem discriminações, inimigo de fundamentalismos ditatoriais e cumpridor escrupuloso de todas as leis. Justiceiro tenaz e inconformista ferrenho, “hedonista perfeito em perfeito levante exótico” (2009: 380), fumador, carnívoro (2009: 132) e exterminador de formigas (2009: 202), JC, poeta sonhador (2009: 237), anda “ao contrário de todo o mundo, como os caranguejos, mas em vez de andar para trás andava sempre para a frente, adiantado em relação aos restantes.” (2009: 125). Afinal, “JC é quem continua errado e não o mundo.” (2009: 209).
, há que destacar os capítulos consagrados à História de Timor, diacronicamente narrada e vastamente comprovada, que já havia sido, em certa medida, objeto parcial do ensaio publicado pelo Autor em 2000 e intitulado Timor Leste O Dossiê Secreto 1973-1975. Retrocedendo, na sua crítica arguta, aos métodos de Celestino da Silva, que tirava estrategicamente partido das rivalidades entre as diversas tribos, com vista à sua ulterior dominação, e que sabiamente recorria ao serviço doméstico de espionagem facultado pelas mulheres e amantes indígenas, revisitando a obra meritória de Filomeno da Câmara, na peugada do seu antecessor, e analisando o ensaio de Teófilo Duarte, suscetível de proporcionar um sólido conhecimento dos mais marcantes eventos novecentistas, vê-se o leitor confrontado - “Nem as elites nem os jovens alguma vez leram estes episódios que bem retratam a grande nação de tribos timorenses.” (2009: 410) - com a descrição da Ilha em forma de crocodilo - contada pelo poeta Fernando Sylvan (2009: 292) -, com a autodeterminação espoletada pela Revolução dos Cravos, com a criação dos principais partidos políticos de Timor, com a sempiterna oscilação entre a Indonésia, a Austrália e Portugal no papel de países colonizadores e neocolonizadores, com a independência encarada como horizonte longínquo a atingir, com as fragilizadas condições de vida dos Timorenses, advindas do racionamento dos géneros essenciais, com as dificuldades de comunicação fomentadoras do isolamento, da ignorância e da despolitização, com a inexistência de sistemas rodoviários, marítimos e aéreos, com o deficiente aproveitamento de plantações insulares (sobretudo a do café, verdadeira fonte de riqueza) e com a questão da lusofonia ou, por outras palavras, da preservação da língua e da cultura portuguesas. Bem interessantes, a todos os níveis, se revelam quer os comentários políticos, breves e incisivos, com que JC brinda certas notícias publicadas no Portugal Diário e na Fonte Lusa de 21 de Junho de 2006, ou no Blogue Causa Nossa e no jornal Público de 25 de Junho do mesmo ano, quer o balanço final da controversa situação política timorense, retoricamente martelado pela quádrupla recorrência do sintagma verbal “Foi pena...”: “Foi pena que os líderes […] pensassem serem apenas umas pequenas ondas […] Foi pena que […] não se tivessem dedicado a emprestar pás e enxadas para ocupar os guerrilheiros desocupados […] Foi pena que […] não tivessem ‘nonas’ (amantes) para lhes contar o que se passava nos quatro cantos de Timor. Foi pena que tenham sido apanhados desprevenidos por esta insurreição tão bem orquestrada pela Austrália, […]” (2009: 471).
a tradição versus a inovação ou a regressão contra o progresso (e não serão as primeiras privilegiadas?) não escapam, numa perspetiva multifacetada, ao monóculo de lança em riste de JC, para o qual “a realidade já ultrapassou a ficção há muito.” (2009: 213): assim é que desfilam, em quadros visuais reforçados pela visualidade da escrita, a morosidade das viagens efetuadas entre Trás-os-Montes e o Porto (2009:31), bem como a celeridade, em termos relativos, dos antigos comboios “Foguetes”, ligando o Porto a Lisboa; a tradição de as famílias transmontanas, como a de sua Mãe, irem a banhos para a Póvoa, enquanto sua Avó e seu Pai elegiam, como estâncias de vilegiatura, as praias nortenhas da moda, como a Foz, Matosinhos, Miramar, Granja e, posteriormente, Espinho (2009: 45); a saudação amistosa dos ‘acinzentados’ cantoneiros que, no antigamente, desempeciam as bermas das estradas de uma indesejada vegetação invasora (2009: 97-98); o romantismo emanado pelos bilhetinhos sentimentais (2009: 121) que o jovem Romeu ou Lovelace endereçava às ‘encarceradas’ donzelas dos seus sonhos (batizada de Tina, neste caso concreto...), muito provavelmente tomado de empréstimo ao camiliano Amor de Perdição e Amor de Salvação ou, então, ao idealismo rural de Júlio Dinis que A Morgadinha dos Canaviais e As Pupilas do Senhor Reitor revelam à saciedade; a solicitude ancilar ou a prestabilidade das serventes ou sopeiras que, embora fardadas, se integravam naturalmente na família; a designação da bica - “Pavoni” e “Cimbalino” - no decénio de 60, que, metonimicamente, re-enviava para a marca da máquina de café expresso (2009: 103). Nos antípodas do passado mítico irrompe o presente desmistificado - “mudam-se os tempos.” (2009: 227) -, alvo certeiro da sátira cáustica e da ironia corrosiva: os cantoneiros, abandonados, deixaram o palco continental, tendo sido votadas ao olvido as suas castiças cabanas, em virtude do desaparecimento da Junta Autónoma de Estradas que, apesar dos escolhos, lá ia cumprindo a sua missão (2009: 99); a terminologia simples de antanho ‘complexificou-se’ (como é sólito dizer atualmente...), a fim de contornar eventuais réstias de complexo conotadas com as profissões mais humildes (2009: 29-30); a linha do Tua, que ofertava uma paisagem de beleza ímpar, viu-se e vê-se seriamente ameaçada, a par dos “Foguetes”, entrementes sumidos, que “apodrecem em Elvas” (2009: 210) e tendem a ser substituídos por luzidios e frenéticos TGV; quanto à vida sã da aldeia, ela dá a sensação de haver sido marginalizada e até petrificada - em proveito do urbanismo - num museu envidraçado, passível de visita, qual fenómeno arqueológico, pelos jovens citadinos desconhecedores da rusticidade e do primitivismo: “O campo é bonito para se passear nas férias e levar lá os putos (como quem os levava dantes ao zoológico) [...]” (2009: 211).
Sobrelevando a análise social, eis a História que fascina JC, “saudosista desses tempos de antanho a viver ancorado no futuro” (2009: 51-52), embora conhecendo de antemão a inviabilidade de alterar a visão estereotipada e convencional dos factos históricos. Nesta conjuntura, o mais insignificante caso de vida, o mais ínfimo detalhe social e a mais prosaica questão quotidiana não deixam de se revelar propícias à sua evocação, posto que “toda a gente fala mas ninguém se deu ao trabalho de estudar a História...” (2009: 470). É o caso da vida da Rainha Maria Pia de Saboia (2009: 35), das conjeturas tecidas, a partir dessa utopia e ucronia conducentes ao mito da Atlântida, sobre a descoberta das Ilhas açorianas (2009: 52-53), da ‘errância’ lendária das encantadas “Sete Civitates” (2009: 56), da enumeração de certos milagres atribuídos a Nossa Senhora do Açor (2009: 58-59), da digressão de teor explicativo - posto que JC também é professor: “JC explica [...]” (2009: 200) - pelas nove irmãs islenhas do Arquipélago (2009: 60 a 68), da descrição, por etapas sucessivas, do terramoto que arrasou Vila Franca do Campo (2009: 77 a 80), do elenco de alguns eventos telúricos açorianos ocorridos em Oitocentos (2009: 82 a 85) e da génese da devoção ao Senhor Santo Cristo dos Milagres (2009: 81). Esta busca quase enciclopédica do saber surge evidenciada pelo culto do pormenor, atestando a profundidade da pesquisa e/ou a amplitude da investigação, traduzidas tanto pela diversidade genológica (lendas - Lenda dos Cavaleiros das Esporas Douradas e Lenda de Frei João Hortelão -, “faits divers” - ‘casos’ domésticos -, crónicas - sobre o rato de Cabrera, o lince-ibérico, o lobo-marinho, a truta-marisca e outras espécies em vias de extinção - e poemas - “Da Europa ao Oriente-do-Meio”) como pela variedade de tons (lírico, irónico e jornalístico, entre outros) que repassam a obra em apreço. Aprende-se, nesta sequência, que o Renault 4CV foi produzido entre 1946 e 1961 (2009: 42), que o total de casais reprodutores de cagarros (e não de charros...) aponta para mais de noventa e cinco mil (2009: 101-102), que o processo de transformação do chá engloba sete fases - emurchamento, enrolamento, fermentação, secagem, escolha, armazenagem e embalagem - (2009: 107-108), que o Festival da Eurovisão, ao qual o povo lusitano rendia preito (ainda lho renderá hoje?), teve início em 1956, que o último modelo da Toyota adquirido por JC em Macau - Cellica A40 Liftback ST de 2 litros - nunca aparecera em Portugal (2009: 126) e que o protagonista-alterónimo, vindo de Bragança, passou a residir, na Lomba da Maia, num T2 + 2 com um sótão, onde o senhorio construiu dois quartos para Nigel e um pequeno escritório para seu pai JC, onde cabem duas secretárias, duas estantes, os PC e os arquivadores (2009: 72). Â
Este prazer do detalhe gostoso apresta-se a desaguar na avaliação estatística, domínio no qual JC é exímio: assim é que, na Lomba da Maia, o clima parece ser, embora não seja, mais húmido e mais fresco do que em Ponta Delgada, com temperaturas variando entre 21ºC e 25ºC (2009: 72); por sua vez, e no ano da graça de 2005, duas botijas de gás custavam 22 euros (preço inferior ao praticado no Continente), a empregada ou auxiliar doméstica (servente ou sopeira de outrora) auferia 25 euros por 8 horas de trabalho, montante este que recebia o jardineiro por se ocupar da horta e do jardim; para mais não referir, e no que respeita ao mesmo ano, tomava-se, em muitas casas, um único banho por semana, havia tão-somente dois canais televisivos - RTP-1 e RTP Açores - e, num universo de aproximadamente 250 000 lares, apenas 32 000 se encontravam ligados à TV Cabo (2009: 86). Mas onde a vertente economicista do economista JC deflagra de modo mais flagrante é, sem sombra de dúvida, na apresentação de projetos concretos visando, no futuro, o desenvolvimento dos Açores: a diversificação de queijos de qualidade, a exportação de produtos agrícolas, a criação do turismo marítimo subaquático, o incremento de passeios de barco ao largo das costas e a internacionalização dos cortejos etnográficos e do folclore português (2009: 498-499).Â
Comentador da sociedade em evolução debruça-se sobre o desajustamento das crianças mimadas e sobre a depressão dos jovens hodiernos e queda-se na ‘transferência’ ou ‘transposição’ da silhueta maternal para a mulher que reputa capaz de colmatar as suas carências afetivas), jornalista (iniciando esta longa carreira com a reportagem, seguida de muitas outras, do “Circuito Internacional de Vila Real” e da “Fórmula 3”) e cultor da etnologia [basta reler as sumarentas páginas sobre a Bragança da sua adolescência - Vimioso e Alfandega da Fé, em particular -, revisitar os deliciosos episódios passados na sua mátria Austrália - “país onde viveria o resto da sua vida” (2009: 347) - e seguir a explicação exaustiva sobre a bem curiosa cerimónia balinesa da cremação], JC é, igualmente, um perito em tradutologia (quem se não lembra da tradução, para inglês, de O pastor das casas mortas de Daniel de Sá?) e um romancista nato, ao qual não é alheia essa operação de espírito, sinónima de disfarce, que é o humor. Não parece despiciendo, a este propósito, apresentar alguns exemplos, poucos que sejam... Aquando da visita aos Açores de sua filha mais velha, marido e neta, ouviram-se, uma certa noite, alguns “gritos porque um grilo estava no quarto deles e não deixava a miúda e a mãe dormir... Ia sendo uma verdadeira tragédia, pois, como sabem, aqui nos Açores, os grilos cantantes são descendentes dos dinossauros... Se, por acaso, uma barata entra em casa (não podem ter as janelas fechadas todo o dia) nem queiram saber a tragédia familiar que se coloca.” (2009: 74). Por seu turno, e no tocante aos sismos de 2006, reportados em jornal íntimo e sísmico, comenta JC que “O aeroporto fica na metade ocidental da ilha. Como o Audi A4 não nada nem voa, não terão hipóteses de sair...” (2009: 80). Do mesmo modo, e no que respeita aos infindáveis dias de trabalho dos Açorianos, é o leitor informado de que “quase todos os locais [habitantes] trabalham pelo menos seis dias de longas horas, quando não é na agricultura que aí são sete dias... que as vacas não seguem calendários, nem feriados ou dias santos.” (2009: 86). Ainda nesta ordem de ideias, se é “devido aos professores que não faziam nada que o país está nesta crise”, esses mesmos professores terão doravante “de se matar a trabalhar para o país sair da crise.” (2009: 86). Prosseguindo neste contexto, confessa JC que não esteve presente no casamento de sua irmã, “que ia, finalmente, dar o nó com o Gil, que não era Grissom, como o da série CSI, antes pelo contrário.” (2009: 379). Quanto a Mia, terceiro grande amor de sua vida, ela “faleceu nos anos 80, JC estaria agora viúvo.” (2009: 257).
Parece ter soado a hora não do Juízo Final, mas de determinadas considerações, porventura impertinentes, sobre o valor e a originalidade indubitáveis de Chrónicaçores.
Primo: Obra de cariz autobiográfico, alternando pendularmente entre as memórias aconchegadas no baú (2009: 348), o autorretrato e a autoficção, ela é narrada não na primeira pessoa, como é sólito neste subgénero autorreferencial específico, mas na terceira pessoa ou, por outras palavras, numa não-pessoa (suporte de um discurso proferido por um eu e destinado a um tu) responsável pelo distanciamento algo irónico instaurado entre o Autor e o protagonista, entre CC e JC.
Secundo: Longe de privilegiar a narrativa retrospetivamente linear de uma existência em devir (e quem não desconfia da falácia dessas autobiografias cujo incipit é quase invariavelmente “Nasci”, nunca podendo ser o explicit “Morri”?), CC e JC tanto rumam a Timor e embarcam para Bragança como singram para a Austrália e arribam a Bali, percorrendo, desta feita, as várias fases da vida que, paralelamente às etapas da evolução social (os primeiros troleicarros que, em 1959, se estreiam no Porto, os entretenimentos dos anos 60 - King, canasta e paciências -, o programa 23ª hora na Rádio Renascença e a TV Rural de Sousa Veloso), se fundem e confundem, voluntariamente convocadas e mais ou menos inconscientemente interrompidas.
Tertio: Livro do conhecimento e da cultura, ele é, inequivocamente, um manual de aprendizagem - “Para quem não sabe”, informa JC (2009: 185) -Â nos mais variados domínios do saber, desde a geografia e a história, passando pela etnografia e pela sociologia, e desembocando na tradução e na arte do romance, proporcionando ao leitor o aprofundamento de uma ou de outra matéria precisa, deste ou daquele aspeto específico. Romance de um romancista de nome JC, e ao serviço do metarromance, a “circum-navegação” não deixa de servir os intuitos do antirromance, problematizando as fronteiras entre o imaginário e o real, equacionando os limites do vivido e do sonhado e questionando o tradicional conceito de romanesco, que começa, de súbito, a vacilar. A prova é que Daniel de Sá entra, nesta “circum-navegação” inovadora, como personagem, a par de Nigel que, da personagem convencional, retém apenas um nome fictício...
Quarto: Surge, desta feita, o conceito de “circum-navegação”, suscetível de ser definido, em termos geográficos e literários, como narrativa autobiográfica de viagens. Se o espaço múltiplo vai fazendo o homem ao longo dos tempos do Tempo, o Autor vai escrevendo o livro ao mesmo tempo que se escreve a si próprio e que escreve sobre o outro que ele também é... Tal escrita catártica (oscilando entre o passado ilusoriamente ressuscitado e o esboço do presente desatualizado) é regida quer pelo anelo de aprofundar o conhecimento do seu eu (não era “Conhece-te a ti próprio” a divisa do templo de Delfos?), quer pela vontade de fazer um balanço de vivências transatas, estabelecendo uma ponte para projetos futuros, quer pela ânsia de vencer o tempo e de triunfar sobre a morte...
Quinto: E que dizer, depois de conjugar o verbo circum-navegar, dos Colóquios da Lusofonia e dos Encontros Açorianos da Lusofonia, cujo Presidente, poeta da Crónica do quotidiano inútil e autor do Cancioneiro Transmontano, parece não ser J. Chrys Chrystello... mas JC, sequaz acirrado de uma certa lusofonia? JC, aliás, irrita-se com a insignificância portuguesa “com manias de grandeza, que agora se reproduz em dez campos de futebol para estarem às moscas, para um aeroporto faraónico sem futuro, um TGV para espanhol ver e outras quejandas. É esta a Lusofonia que JC não quer.” (2009: 127-128).
Aguardemos pacientemente o segundo volume da trilogia Chrónicaçores para podermos desvendar este enigma policial: No ‘rasto’ de JC...
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Maria do Rosário Girão Ribeiro dos Santos
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Fumane (moriente die), 6 de Agosto de 2009
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