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Seg., Nov.

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Prefácio

Que direi deste (belo) livro?

Chrys Chrystello é um sonhador. E tanto sonha com a estátua de um cavaleiro e seu cavalo na ilha do Corvo como tem pesadelos com uma procissão de penitência em 1713, entre mortos e escombros, ou com a ilha a dividir-se em duas, como há milhares de anos o ilhéu das Cabras junto à costa da Terceira. E chama-me céptico, porque só acreditarei na estátua quando, um dia, vir com os meus próprios olhos a ilha do Bom Jesus, que Gaspar Frutuoso diz que fica a cento e vinte e duas léguas e meia de S. Miguel, tendo dezoito de comprimento. Da estátua consta que ainda lá está, cada vez menos parecida com um cavalo e um cavaleiro, que provavelmente nunca foi, e dos escombros de 1713 só os houve para as bandas dos Ginetes, Mosteiros e Candelária, sem se terem chorado nenhuns mortos, a não ser os que pelas leis naturais da vida se iam dos tremores libertando. A ilha, esta, por enquanto não se partiu, e pouco até hoje se repartiu. Nada habituado ainda aos tremores dela, até os tremeliques dos alicerces do seu castelo, quando passa um camião carregado e acelerado, lhe parecem o anúncio de outro 1755. É que os sismos podem avaliar-se pela escala de Mercalli, de Richter ou de S. Jorge. Acerca desta contava Augusto Gomes, escritor de histórias deliciosas e de receitas de culinária saborosíssimas, um caso acontecido naquela ilha, durante a crise sísmica de que o Chrys também fala neste livro, uma dessas que de vez em quando vêm por aqui exibir-se em sessões contínuas. Encontravam-se por lá uns quantos cientistas para acompanharem o fenómeno, e aconteceu que, estando eles numa praça em cavaqueira com habitantes locais, a terra deu uns solavancos e, quando acalmou, um dos nativos disse: “Este foi de grau cinco.” Foram os sábios verificar nos sismógrafos, e constataram a confirmação. Grau cinco. A cena repetiu-se e, mais grau menos grau, terá sido assim. Um tempinho depois, outro ataque de nervos daquela boa terra, e o mesmo senhor a garantir que esse fora de grau quatro. E fora. A terra tomou fôlego para mais uns arrepios, ou deixou que os homens o tomassem, e lá veio com uns movimentos tão imperceptíveis que era preciso estar muito atento para poder percebê-los. “Este foi de grau três”, assegurou o sismógrafo humano. E foi. Intrigado, um dos cientistas presentes perguntou-lhe como é que ele conseguia acertar sempre. Embora mais ou menos óbvia, a resposta não deixou de causar risos e espanto: “Ó meu rico senhor, isto é conforme o cagaço”.

Pois bem, o Chrys Chrystello usa é esta escala, mas exagera.

Mas disto e de Atlântidas perdidas e moedas fenícias achadas nada mais direi, para que o Chrys não tenha de contrapor ao prefácio um posfácio que o negue. Até porque ele me fez personagem destas crónicas, e uma personagem deve entrar muda e sair calada. Pelo meio, o autor dá-lhe a palavra quando quer e para dizer o que quer, muitas vezes porque não se arrisca a dizer verde quando o verde é verde, por mais que o queira verde. E, tendo eu feito ecoar assim de surpresa a memória de Lorca, até para surpresa minha que isto do pensamento nem sempre a gente pensa o que quer, a este respeito me calo, passando a ocupar o meu lugar na esquerda alta do palco para anunciar o espectáculo. Antes que o meu amigo me faça o mesmo que Unamuno fazia às suas personagens quando deixava de precisar delas.

Será então que Chrys Chrystello mente? Por Deus, nem por sombras pretendi insinuar tal. Que seria da literatura se chamássemos mentira a todas as Joaninhas de olhos verdes, aos Magriços cavaleiros de salvar honras ofendidas ou até aos Malhadinhas almocreves, mais humildes a montar e desmontar? Perdia-se o melhor dela, da literatura, que a respeito de verdades muito certinhas estimamo-las tão pouco que são muitos mais os que lêem livros de viagens, ainda que chamem Mentes Minto ao honesto autor, do que os que procuram saber dos lugares e dos povos, contados por quem tenha nascido e sempre vivido na terra de que fala. Porque, nisto de acreditar no que conta o viajante apressado, penso sempre no que uns marinheiros, não sei de que nação, ainda hoje talvez digam aos amigos do modo como se enterra um defunto aqui na Maia. É que eles passaram em frente da igreja no momento em que a banda de música iniciava uma peça marcial, porque já vinham saindo as coroas e bandeiras do Espírito Santo enquanto os foguetes iam fazendo o seu papel de inquietar ares, aves e outros animais, incluindo alguns humanos. E, logo atrás das bandeiras, um caixão com seu morto, cujo corpo também assistira à missa.

Ah, só mais um exemplo, por favor. É que isto de prefaciar um livro de crónicas não é o mesmo que escrever a introdução de um romance ou de um ensaio. Do romance, quando o prefaciador tenha pouca imaginação ou escassa vontade de puxar por ela, pode sempre recorrer ao irritante processo de o resumir. “Manuel conheceu Ana numa manhã de nevoeiro, casaram-se numa tarde de sol, e foram felizes para sempre.” Então para que teve o romancista de escrever quatrocentas e vinte páginas para contar isto? E para que vai agora um filho de Deus ler o romance se já sabe que eles foram felizes para sempre?

Se for um ensaio ou um livro de crónicas, há uma tirada cultíssima que raramente falha. Refere-se a condição humana, e escreve-se o resto à volta do tema. Fora eu comodista, e, dizendo isto mesmo desta circum-navegação do Chrys, sem mentir estaria o principal explicado. Porque facilmente se percebe que quem andou à volta do Mundo não pode escapar de ver e de sentir as contradições da condição humana. Óbvio, não será? Mas o que se espera de quem nestas circunstâncias está no uso da palavra é que nos poupe ao óbvio. E, no meu caso, que venha com o tal outro exemplo anunciado. Que serve como prova circunstancial de que não basta ver um cortejo do Espírito Santo, que por acaso coincidiu com um funeral, para fazer ideia de como se enterra um cristão numa ilha dos Açores.

Pois foi o caso que, se eu tivesse visto apenas um certo grupo de nipónicos na Ilha de Toronto, no lago Ontário, teria ficado com uma ideia muito errada de como se comportam os filhos do Sol Nascente perante desconhecidos. Estavam esses japoneses, que é o que os da Terceira chamam aos de S. Miguel, mas aqueles eram japoneses dos verdadeiros, preparados para uma fotografia. Eu fiz o que é mais ou menos normal em situações semelhantes: ofereci-me para tirar o retrato, para que o fotógrafo de serviço pudesse ficar com os outros dezanove ou trinta, que nem sei quantos seriam. De súbito, o homem começou a vociferar, deu pinotes saltando com os dois pés ao mesmo tempo, disse não sei o quê lá na língua dele, suponho, que me deixou estupefacto mais o grupo com quem eu ia. Uns cem metros mais adiante, uma cena rigorosamente igual. Os mesmos fatos pretos, as mesmas caras, o mesmo fotógrafo, as mesmas alturas. Como num pelotão de infantaria. Saí cuidadosamente da estradazinha para passar por detrás do fotógrafo, que eu só sabia que era outro e outro o grupo porque os primeiros continuavam à razoável distância de um hectómetro, mais japonês menos japonês. O da máquina veio ter comigo, fez aqueles salamaleques que a gente pensa que só são de ver em filmes, e deu-me a entender, na língua universal dos gestos, que me pedia para substituí-lo na função. Acedi, claro, ele foi juntar mais um sorriso aos outros dezanove ou trinta, e eu ainda hoje peço a Deus que já me tivesse passado a estupefacção e que os vinte ou trinta e um tenham ficado todos bem no retrato.

A moral da história é a seguinte. Se eu não tivesse dado com aquela duplicação do primeiro grupo uns cem metros mais adiante, que ideia faria dos japoneses?...

Segunda lição da história. Chrys Chrystello não fala nunca de coisas, lugares e pessoas que só viu uma vez na vida. Ele esteve lá, ele está cá, ele é de Trás-os-Montes e da Austrália, de Timor e de Macau, de cada pedaço ou pedacinho de terra e de gente que aqui irá aparecendo num retrato fielmente feito de palavras, mas com a alma do autor por dentro.

A crónica é uma espécie de literatura total. O mais completo e complexo género literário. Nele cabe a reportagem, a crítica, a autobiografia, a ficção. Enfim, tudo o que se lhe queira meter dentro. O sabor do caldo que daqui resulta depende da sensibilidade do autor. Do dedo, como se diria em culinária. E Chrys Chrystello tem um dedo muito experimentado e muito experiente. O que não é a mesma coisa, pois não falta quem tenha muitas experiências e nenhuma experiência. Como diria Camões, um saber de experiência feito.

Chrys, que é um dos raros exemplares de luso-australianos que existem no Mundo, afirma-se mais austral do que boreal. Isso é o que ele pensa… O seu sentido crítico, por vezes apocalíptico, cabe muito bem na linha queirosiana ou ramalhal. A sua aversão pela Inglaterra – o que é sempre uma virtude apreciável – é tipicamente portuguesa, pelo menos dos portugueses que sabem o que se tem passado depois do tratado que D. Vasco Domingues assinou em Tagilde em nome de D. Fernando, e que precedeu o de Windsor. (Como D. Vasco Domingues era o chantre de Braga, não admira que, de então para cá, os ingleses só nos tenham dado música. Da má.) O seu descontentamento constante, a respeito do que se passa com este povo para a beira-mar empurrado, é a assinatura digital (de dedo, lembram-se de quando “digital” só queria dizer isto?) que o identifica mais connosco do que com os australianos que estão convencidos de que a Austrália é o melhor país do Mundo. (Seria, se não ficasse tão longe.) Além disso, tem aquela maneira de ser que faz lembrar Thomas Paine, o tal que disse “my country is the World”, e andou pela América a desinquietar os outros ingleses todos, até à independência sob “stars and stripes”. Mas até nisso é um português típico, um português histórico, daqueles capazes de calcorrearem o mundo inteiro e de sonharem novas pátrias. Ou não tivesse sido ele um dos jornalistas que mais se destacaram em defesa dos direitos de Timor, ou da parte de Timor que fica do lado onde o Sol nasce.

Chrys viu o desabar dos restos do Império nos confins da Terra. Embora aí o Império fosse mais de mapa que de realidade feito. Timor foi praticamente apenas um lugar de comércio falado também em português, e Macau um empréstimo a prazo “sine die”.

Mas o Chrys tem outra qualidade que o torna tão português quanto eu: fala e escreve nesta língua como se ela fosse mesmo a sua pátria. (Cá está a fatalidade. Quando a gente faz mais de três citações, duas pelo menos são de Camões e de Pessoa…) E nisto, meus caros, não há que pôr defeito. Nem na língua nem no modo como ele a usa. Porque esta língua tem a vantagem de ser una e única no país inteiro. (Apesar de haver uma lei que declarou oficial uns resquícios de linguagem raiana, uma curiosidade histórica do seu Alto Douro ancestral.) E disto poucos países se podem orgulhar. Fala-se e escreve-se da mesma maneira. Não é como o chinês, em que, por exemplo, o símbolo que representa a palavra chá se lê assim em mandarim e “té” em cantonês. De tal maneira que uns senhores do Império do Meio, que estiveram em Ponta Delgada na abertura de uma exposição de arte antiga chinesa, não se entendiam. Era gente de embaixador para baixo, mas não muito mais abaixo. Tagarelavam, e via-se bem que aquilo que uns diziam era chinês para os outros. Então o esforçado comunicador pegava numa folhinha de papel (para isso o inventaram eles há dezanove séculos), desenhava alguns daqueles muitos milhares de sinais que só eles entendem, mostrava à sino-audiência, e os outros desfaziam-se em reverências de assentimento.

A nossa vantagem é que qualquer português que saiba ler entende o que o que o Chrys escreveu nestas crónicas. E de certeza que vai gostar. E eu prometo voltar a lê-las em papel, porque, apesar de muito ter valido a pena, isto do ecrã de um computador não tem o mesmo gosto. Falta-lhe o cheiro. Que é a única sensação que o Chrys não conseguiu transmitir desta sua viagem de circum-navegação.

 

                   Daniel de Sá

 

 

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