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   Porto Formoso, 27 de abril de 2014

 

9 ilhas, 9 escritoras, de Helena Chrystello e Maria do Rosário Girão

 

 

A antologia 9 ilhas, 9 escritoras aparece como um espaço escrito de homenagem ao ser-se ilhéu no feminino.

Sem pó-de-arroz, batom ou lápis kohl, são as palavras que enfeitam estas nove mulheres.

Melhor: são estas nove mulheres que enfeitam as palavras, que as adornam com os seus sentimentos, que as refrescam nas suas memórias, as iluminam com contundência e, pela cuidada exatidão com que as escolhem, as tornam suas.

«Salvé» Judite Jorge, Brites Araújo, Luísa Ribeiro, Joana Félix, Natália Correia, Madalena Férin, Maria Luísa Soares, Renata Botelho e Madalena San-Bento. «Salvé», no fundo, às ilhas desta coletânea. As ilhas… “As”: determinante, artigo definido, feminino, plural.

Apesar da natural pluralidade das perspetivas autorais, Helena Chrystello e Maria do Rosário Girão conseguem, pela primeira vez, reunir uma seleção de textos onde se lê a verdade feminina do nosso arquipélago e onde se aborda, com a elaborada simplicidade que se deseja em cada mulher de bom gosto, temáticas tão nossas como a insularidade, a liberdade, a emigração ou o amor.

Neste tributo à mulher-escritora-açoriana dá-se voz a quem nunca se calou e espaço a quem sempre existiu.

Procuraremos, então, nesta breve apresentação, revelar as possíveis principais temáticas da prosa e da poesia dos excertos que constituem a obra 9 ilhas, 9 escritoras, declarando, desde já, que não será fácil fazê-lo, pois a profundidade da linguagem desta obra, por vezes desconcertante, não deixa ninguém indiferente e absorve, de tal forma, a mente que poderá não haver espaço para muito mais.

Assim, procurando linhas comuns que alicerçassem mais facilmente esta exegese, deparamo-nos, desde logo, com a temática da insularidade.

Todas estas escritoras, selecionadas pela Helena Chrystello e pela Maria do Rosário Girão, nasceram em ilhas açorianas e sentem tal facto como condição particular.

Não há espaço, na sua poesia ou prosa, para as simplórias e limitativas definições geográficas do ser-se ilha. Ser ilha é mais do que viver rodeada de água; ser ilha é ter um estatuto e estar num estado que, não se escolhendo, torna-se parte intrínseca de nós:

 

«uma ilha já não é uma ilha hoje

(…) uma ilha já não é de muros de água (…)

Libertei-me da ilha no meu corpo

Mas tenho-a enquistada na minha alma.»

(Madalena Férin)

 

Estas palavras de Madalena Férin transportam-nos para a indelével certeza de que a ilha cresce connosco e é parte de nós. Mais, a ilha somos nós, é a nossa vivência e forma de ser interior. Como nos diz Natália Correia, somos

 

«destino de água salgada

Principiado na névoa»

 

«[Somos] aquela ilha esquecida

(…)

Que, à noite, eu vou habitar;

[Somos] aquela ilha encantada (…)

A ilha não descoberta (…)

A ilha desconhecida (…)

Aquela ilha distante (…)

Aquela ilha esquecida (…)»

 

E só poderá sentir ou falar sobre isso quem, no fundo, também for ilha porque, como refere Maria Luísa Soares,

 

«quem nunca foi ilha pensa que sabe muita coisa sobre o assunto e rodopia à volta de teorias mais ou menos utópicas, logros espantosos que apetece desmistificar.

Ser ilha não é coisa que se escolha nem destino fácil de assumir.»

 

Descrita, assim, levemente, a ilha que algumas encerram, não fique o leitor-não-ilha com a ideia de uma internalização e uma introspeção tais que não haja espaço para mais nada.

À ilha-mãe vai sobrepor-se a ilha-redoma, a ilha-comunhão, a ilha-gerada e é nisto que reside uma outra beleza destas 9 ilhas, 9 escritoras: a singularidade de olhares e a antitética abordagem de uma mesma realidade. Pois se é certo que a ilha é transportada por nós, também é igualmente certo que o que mais ansiamos é ver e rever, precisamente, a ilha.

Somos ilhéus, a ela pertencemos.

Todavia, e porque no feminino, Brites Araújo, espelho da vertiginosa atração pela ilha, não é ilhéu, mas

 

«Ilhoa, pela graça dos deuses

 

«O que eu gosto de ilhas! … Ao arrepio de outros ilhéus, queixosos dos achaques da insularidade, tenho um fascínio quase existencial por tudo o que seja pedaço de terra cercado de mar por todos os lados.(…) [No entanto], gosto de pensar que, simplesmente, as ilhas acontecem-me. (…)»

 

E esta forma arreigada de sentir, contida na deliciosa exclamação inicial, obedece a rituais próprios, como continua a mesma autora:

 

«(…) [mas] às ilhas, e das ilhas, só se chega verdadeiramente, e só se parte, por mar. O avião, este despurado prestidigitador, atrapalha os ritmos, entorpece os sentidos, confunde tudo. Ainda mal se partiu, já se está a chegar. Aldraba-se na distância, devora-se o tempo, enxovalha-se essa digna solidão de esfinge que é a natureza própria da ilha. E não se chega a conceder ao peito a ânsia de horizonte e o alvoroço do avistamento (…) nesse processo lento dos sentidos (…) que é ver a ilha ir-se instalando cá dentro.»

 

Metáfora por excelência do ser humano, a ilha está, assim, dentro de cada escritora e a ilha molda formas, espaços e seres.

Nos Açores encantados são as ilhas as ferramentas primordiais, as alfas e ómegas que acompanham a evolução:

 

«(…) e o bater dos teus átomos disse aquilo que tu não querias dizer:

Que foste calcada pelos dinossauros gigantes,

Que serviste de travesseiro à mulher das cavernas,

Que escutaste o grunhido do ser primitivo,

Que sorriste condoída ao seu amplexo brutal,

Ou se encostou a ti Eva expulsa do Eden terreal (…)»

(Madalena Férin)

 

A ilha é mãe, tal como a pátria é mátria.

Com Madalena San-Bento descobrimos isto pela mão do seu Ismael (tão sedento de descobertas como o seu homónimo da baleia) que, conduzindo-nos pela paisagem, revela a ligação umbilical que nos une à terra, dá conta da fertilidade do solo, como se grávido de sementes estivesse, recupera as voluptuosas formas dos montes, aponta o que foi gerado e fala do ar da ilha que, como uma sonda, nos invade o corpo para melhor nos conhecer e sentir.

Assim, é quase com pena que saímos desta realidade, mas logo percebemos que a ilha só prende quem verdadeiramente quer nela ficar e com ela comungar.

De facto, Judite Jorge conduz agora o leitor pela ilha que liberta os seus filhos e os entrega a terras distantes. E, uma vez mais, a descrição destas ousadias e destes sonhos de emigração por terras desmareadas é única pelas mãos desta escritora:

 

«[e vinham nas sacas] gamas de morango (…)[dos] primos que no natal mandavam postais com dizeres em inglês (…)[e às vezes] uma nota de cinco dólares (…).[Os primos] que se iam embora no final do verão prometendo voltar e às vezes nunca mais o faziam (…)»

 

Feita de cheiros, imagens e gostos, a descrição aqui lida é única e só possível porque a mulher sente, e vê, e fala, e conta de maneira diferente do homem.

Vai-se, assim, saindo desta ilha que até agora calidamente nos acolheu no desvendar da escrita destas 9 escritoras açorianas.

Embora as mais das vezes provocadas por fenómenos naturais («como se o ventre da terra conjurasse todos os urros, todas as rouquidões do mundo e ali mesmo os despejasse» - Brites Araújo), a partida das ilhas também aconteceu (no início e esporadicamente) no feminino, pela vontade de quebrar com tradições que relegavam a Mulher à submissa condição do lar:

 

«(…) Enquanto mais velha das raparigas, cabia a Maria tomar conta dos irmãos mais novos e, nas manhãs em que a mãe estava para o mato, fazer uma meda de bolo do tijolo. (…) Tudo isto era Maria obrigada a saber e a fazer (…).» - Judite Jorge

 

A universalidade desta Maria transporta-nos para a realidade de tantas outras que, ainda por aí, consomem vivências desprovidas de sentido, abdicando de si em prol de outros impostos. Mas esta Maria, na continuidade do texto de Judite Jorge, acaba por anular as amarras da tradição e do género que a prendiam em casa e parte para a América, para o desconhecido.

Na obra partimos com ela e com outras personagens, rumo à descoberta de ouros espaços que espreitam por entre a prosa e a poesia destas 9 escritoras açorianas.

Passamos, assim, também pelas Califórnias de abundância, olhamos o Tejo («o Tejo [que] não tinha o cheiro forte do mar das ilhas. (…) o Tejo [que] era mar para quem não tivesse vivido ao pé do mar» - Judite Jorge), pastoreamos casas mortas, e tocamos na lava que esculpiu o Penedo Negro.

Nesta sábia compilação das suas obras, tudo é permitido e nada aparece por acaso.

Aqui, nesta obra, junta-se a poesia a tarefas domésticas (como o faz Luísa Ribeiro que «inclinada na água parada / da pia (…) / [volta] a correr e apanhará a roupa» ou quando Joana Félix recebe, na morada da sua escrita, Manuel com «(…) uma alegre tristeza que / se assemelha ao quente-frio da sobremesa»); assiste-se a uma greve de relógios (pois «já que não havia nada de assinalável na vida da pessoa que vivia naquela casa, para quê continuar em funções?», diz-nos o relógio de Maria Luísa Soares); enumeram-se as espécies autóctones (« (…) os homens carregando os cestos cheios de sargos, moreias, caranguejos, lapas» pela mão de Judite Jorge, ou na pergunta retórica de Luísa Soares: «Nunca ouviram falar das orgias noturnas dos cagarros?») e visitam-se espaços sagrados como o convento («A irmã Mercês. / A porta pesada / com fechadura negra de ferro. / O cheiro a madeira e / o chão de pedra. / (…) a árvore junto ao muro / com gradeamentos, / no pátio de relva.» - Joana Félix).

E deparámo-nos com escritoras que de tão belas na construção semântica e sintática das suas obras não temem recuperar outras construções e outros destinos; indagar por eles e fazer, uma vez mais, da sua escrita arma, suporte, cinzel de mentes.

 

«Que é de Abril?                                                

Que é das manhãs abertas sobre Abril,

amanhecidas por um país em sol de searas?

Que é dos olhos rubros de cravos,

Empunhados como bandeiras de futuro?

Que é do poema, do canto,

Da voz que se erguia da rua em povo?

Que é da alegria feita urgência

De haver um país a haver mais à frente?

Que é do amigo, do companheiro, do camarada

Inscritos na flor do peito em liberdade?

Que é de sermos a mão e o sonho,

O braço e o abraço,

A garganta e a voz?

Que é de Abril?

Que é de nós?»

- Brites Araújo

 

A escrita é, agora, espaço de denúncia e delação que cala fundo em quem a lê.

Na linha da intervenção ideológica e política, volvidos 40 anos da revolução e em homenagem a este movimento de quase recuperação da humanidade dos portugueses, olhámos, também, para a temática da descolonização com Luísa Soares que, na cruel delicadeza de cada palavra, refere:

 

«desorientados bichos

Que nós fomos

Na pressa ensandecida de

Freneticamente

Te trocar por outra terra

Outro destino»

 

A atrativa crueza da linguagem é outra das mais importantes características desta obra de Helena Chrystello e de Maria do Rosário Girão: tudo é dito, pela mão das 9 escritoras, de forma tão pura que é, aparentemente, dura. Não há, em nenhum dos textos selecionados, subterfúgios, esconderijos ou dissimulações de linguagem. Há, isto sim, espaço para a interiorização do que nos é dito, para a sua apropriação, a partir da exatidão visceral, da natureza primitiva de cada palavra. A linguagem surge, assim, tão natural como qualquer outra função orgânica. Como adianta Joana Félix:

 

«a palavra é

Insubstituível

Substancial.

É aquela, só aquela

E por mais que tentes

Nenhuma outra

Se acomoda ali

No lugar dela»

 

E esta é a regra para entrarmos, desta feita, no mundo feminino do Amor, onde descobriremos que nem sempre se ama porque se quer e que nem sempre se ama o que se é… As palavras exatas isto nos dirão.

Na intimidade do sentimento, devoram-se, então, as páginas do Diário das Mulheres Toleradas de Madalena San-Bento:

 

«Desde que a consciência das coisas me nasceu, que amei o meu corpo, e é por isso mesmo que detesto agora perdê-lo, assistir a esta derrota infligida pelo tempo. Talvez os outros ainda não o notem, ainda não o sintam; mas eu sei-o: O tempo urge e nada acontece.

Porque é preciso uma grande intimidade com a carne e o cetim das maciezas para saber desde logo quando o tempo avança e a juventude perde.

Tive uma cintura heroicamente delgada, ancas prósperas mas redondas e curvilíneas, ventre firme, com a pele brilhante e humedecida à volta do umbigo:

(…)

Cresci só, sem um mapa, sem uma revelação, sem a orientação de ninguém.

Venerei este corpo por múltiplos motivos. Por ser a máquina abstracta e requintada que é, a obra decorativa que me divertiu com certas subtilezas, e por ser o meu, aquele que, a palpitar na solidão, eu sinto.»

 

E sofremos com o não amor de Senhorinha e com a ambição amorosa de Teresa em amar o que, para já, não é:

 

«TERESA:

André foi uns dias ao Continente. Tive tantas saudades!

Porém, quando chegou, amei-o do mesmo modo, com reticências... Estou cansada de amores reticentes! (…) Longe do meu desejo, da sua adoração, morro lentamente e apodreço pelos dias abaixo; vou correndo por aí como um cadáver andante...

Longe do meu amor. Que é ele, o homem que imagino e ambiciono: exactamente a sua pessoa quando não está comigo. (…)

 

SENHORINHA

Amei-te, sim, de todas estas vezes sem rumo e sem razão, apenas porque o coração era carente e necessitava amar.

(…) Mas nunca te amei tanto – e sei-o perfeitamente agora – como no dia em que o teu amor me abandonou; senti que tinha esperado sempre (embora afirmasse constantemente o contrário) um milagre, a fantástica irracionalidade de que não desistisses de mim.»

 

E paramos, diferentes, perante a incrível escrita intimista e visceral de Renata Botelho:

 

«(…) tenho frio e uma confissão

Para te trazer: traí-te tanto

Com outros versos, corpos

Belíssimos, esguios e quentes

Aninhando-se comigo na cama.

Trago esta culpa nos ossos,

Enganei-te letra após letra (…)

 

Nas mãos desta autora, a escrita é, de facto, orgânica; e sente; e porta-se; e comporta-se; e pensa como ser humano. São as palavras mais do que mensageiras para Renata, porque são autoras do que transportam:

 

«nas vozes é assim:

Só a última palavra

cabe no beijo;

o lábio segue-a e

poisa húmido,

na sílaba tónica.»

 

Há a vontade de, quase, sorver este amor, de o tornar definitivo nas palavras de carne e sangue que se utilizarão para o definir:

 

«escreve-me

Cartas em papel, com cheiro a tinta

E palavras repetidas

Daquelas que

Já não se dizem.

Mas que sejam

de carne

e de sangue para

enganar a ausência»

(Joana Félix)

 

E o toque vaidoso também desponta nas palavras de Luísa Ribeiro que, de tão femininas, se poderiam usar ao pescoço:

 

«gostava de te chamar um superlativo

Subtrair-te os limites do nome

Ter um acrónimo

 

Pô-lo ao peito

Em jeito de colar»

 

Como todo que é, esta obra agora lançada, da autoria da Helena Chrystello e da Maria do Rosário Girão, traz a lume não só o desejado e merecido tributo à mulher-escritora açoriana, mas, acima de tudo, em nosso entender, o espaço das letras no feminino universo açoriano onde é possível ver e constatar, em nove diferentes exemplos, a riqueza mais pura, o sentir mais profundo, o dizer menos contido da escrita no feminino, simultaneamente local e geral. A excelência dos textos selecionados destas nove escritoras açorianas abre ao leitor diferentes portas para a significação do ser-se mulher, do ser-se ilhéu e do ser-se palavra. Abre-lhe caminhos tão cosmopolitas como os da Fajãzinha e tão rurais como os de Rhode Island…

Para estas escritoras, celebra-se cada existência, cada momento, cada fragmento. Em cada canto espreita a inspiração e tudo é vontade de viver de forma escrita. Até as agendas assim estão anotadas:

 

«Já não tenho tempo

Para tristezas,

Fiz as contas

E tenho a agenda

Cheia de sorrisos!»

 

À fertilidade da significação, junta-se a facilidade da escrita e, neste tributo a algumas Escritoras Açorianas (que assim não se chama, mas que se poderia assim chamar), vê-se que cada palavra puxa a seguinte, numa catadupa de vida própria e incontrolável. Diz-nos a Joana Félix:

 

«Dizem que depois de escritas

As palavras passam a ter vida (…)»

 

E, de facto, assim é. Ler esta obra é como beber de uma fonte fresca que corre sem parar, que nos enche a alma e nos aviva as memórias pela proximidade com que as trata.

Desfolhar este livro é como penetrar no ventre literário de cada uma destas escritoras e observar a umbicalidade possível que as une à sua obra.

Ler esta inteligente e única compilação é ouvi-la dizer-nos, como nos ensina com graça Maria Luísa Soares,

 

«queres-me querer?»

 

E nós dizermos, eu quero.

 

Lurdes Alfinete

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