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ChrónicAçores vol 2 Lançamento Maia 1 de julho 2011

Iniciarei o ritual de agradecimentos pelo Jaime Rita por me ter incluído na celebração dos 5 séculos da Maia e desejar que esta cumpra aspirações ancestrais e que em breve seja elevada a vila como já é sentida por muitos.

Uma palavra de apreço à Professora Ana Paula Andrade pela sua amizade e pela sua total disponibilidade para nos presentear com excertos do Cancioneiro Açoriano bem apropriados a este livro. Sinto-me grato pela magistral apresentação do Dr Pedro Bicudo de quem partiu a ideia de se fazer o lançamento nacional desta obra na Maia nas celebrações dos 500 anos, e ao Francisco Madruga da Editora Calendário das Letras, por ter acreditado que valia a pena publicar este livro e por último, já que isto se assemelha a uma apresentação dos Óscares em Hollywood, devo agradecer à minha mulher por ter casado comigo.

Sem ela, estaria na Austrália, nunca teria conhecido os Açores, nunca teria sentido esta açorianidade que através dos Colóquios da Lusofonia temos levado aos quatro cantos do mundo e que é tratada na ChrónicAçores. Por isso, falarei pouco do livro para que o possam ler. Nele, explico como vindo de outras culturas e continentes me deixei apaixonar pela ilha. Os outros mundos, lá fora, perderam importância e servem só para eu divulgar um dos segredos mais bem guardados: o da existência de uma importante literatura de matriz açoriana. Existem muitos autores açorianos que merecem ser lidos. Mas hoje a internet, a televisão, os jogos de consola e outras diversões mais mundanas afastam-nos da leitura como forma de aquisição de saberes. Temos mais informação do que em qualquer outra era, mas estuda-se menos, lê-se menos e subsequentemente sabe-se menos. Nem todos os escritores são complexos como Cristóvão de Aguiar. Uns falam da vida árdua e da fome dos baleeiros do Pico, como Dias de Melo. Outros são poetas como Vasco Pereira da Costa e Eduardo Bettencourt Pinto. Mas poucos serão tão acessíveis como o nosso maiato condecorado, Daniel de Sá que tanto gosta de ensinar História enquanto nos conta as suas estórias. Outros nomes havia mas escolhi os que melhor conheço e a quem chamo amigos. Como tradutor de Daniel de Sá fiquei cativo e apaixonado e tive de escrever este livro para me libertar da poção mágica da sua escrita e daí nasceu “ChrónicAçores: uma circum-navegação”.

Se bem que a minha pátria seja a Austrália eu conjugo-a com a de Fernando Pessoa, a língua portuguesa. Se hoje tenho como mátria Bragança no nordeste de Portugal, aos açorianos o devo, pois foram eles quem me ensinou a ter amor às verdadeiras raízes onde quer que se viva. Ao vê-los tão amantes das suas terras tive de ir descobrir as minhas origens a Bragança embora lá vivesse menos tempo do que em qualquer outro lugar. Sinto como todos transportam esse sentimento de pertença aqui e no estrangeiro.

Quando aqui cheguei desconhecia quase tudo sobre as ilhas, mas descobri no Dicionário do Morais os termos “chamados” açorianos. A língua recuada até às origens e adulterada pelo emigrês que trouxe corruptelas aportuguesadas e anglicismos. Trata-se de desvendar o arquipélago como alegoria recuando à sua infância, sem perder de vista que as ilhas reais já se desfraldaram ao enguiço do presente e não podem ser só perpetuadas nas suas memórias. Nesta geografia idílica não busquei a essência do ser açoriano. Existirá, decerto, em miríade de variações, cada uma vincadamente segregada da outra. Também não cuidei de saber se o homem se adaptou às ilhas ou se estas condicionam a presença humana, para assim evidenciar a sua açorianidade. Limitei-me a observar e a analisar o que me rodeia e depois passo ao papel essas crónicas do mundo que me envolve. Aliás, estou convencido de que uma das razões para haver tantos escritores nos Açores se deve exatamente ao facto de vivermos nestas ilhas. Em São Miguel o verde dos montes, as vacas alpinistas e o mar que nos circunda são responsáveis por nos levarem a escrever.

Num mundo marcadamente materialista como este, decidi que a minha herança para os filhos seria só a riqueza dos conhecimentos que andei colecionando ao longo da vida em circum-navegação e que agora condensei em livro. Aprendi mais nos países onde vivi do que qualquer universidade me poderia ensinar. Com os aborígenes australianos entendi como é possível preservar a língua e cultura mesmo sem haver escrita há 60 mil anos. Com os chineses apreciei o valor do futuro com base nos ensinamentos do passado, e com os timorenses, macaenses e outros aprendi saberes que fazem parte do meu quotidiano. É disso que este livro fala.

A ilha para Natália Correia é Mãe-Ilha, para Cristóvão de Aguiar, Marilha, para Daniel de Sá, Ilha-Mãe, para Vasco Pereira da Costa, Ilha Menina, para mim nem mãe, nem madrasta, nem Marília nem menina, mas Ilha-Filha, que nunca enteada. Para amar sem tocar, ver dilatar nas dores da adolescência que são sempre partos difíceis. Toda a vida fui ilhéu. Perdi sotaques mas não malbaratei as ilhas-filhas. Trago-as comigo a reboque, colar multifacetado de vivências de mundos e culturas distantes. Primeiro em Portugal, ilhota perdida da Europa durante o Estado Novo, depois em um capítulo naufragado da História Trágico-marítima nas ilhas de Timor e de Bali, seguido da ínsula de Macau (fechada da China pelas Portas do Cerco), da imensa ilha-continente Austrália, e na ilhoa esquecida de Bragança no nordeste transmontano, antes de arribar a esta Atlântida Açores.

A ChrónicAçores retrata os meus amores ilhéus. Além da literatura dos Açores, também contém a primeira monografia da Lomba da Maia (onde vivo) antes de viajar de Bragança à Austrália, e aos meus amores por São Miguel, Santa Maria, São Jorge, Faial e Pico.

Aliás a inquietude persegue-me desde que saí de casa em 1972 e – mais propriamente – desde que deixei a Europa em 1973 e me abri ao conhecimento universal e multicultural. Adquiri uma errância mais própria de nómadas ciganos do que das origens sedentárias de marrano galaico-português. Esta inconstância assola-me ainda mais desde que me arquipelizei nos Açores há seis anos. Sou conhecido pela infidelidade no amor às ilha que habito. De cada vez que saio da Ilha verde - e visito ou conheço nova ilha – enamoro-me loucamente como um jovem adolescente de sangue quente em busca de paixões avassaladoras como são os amores da juventude. Só posso viver numa mas em todas quero estar em simultâneo, pois nelas me sinto em casa.

Quero salientar que é uma honra estar aqui nos 500 anos da Maia embora saiba que a minha terra, que a Lomba da Maia ainda não recuperou da tentativa de mudar o nome para N. Sra. do Rosário, ferida pela desfeita real de 1699 quando "...o rei Dom Pedro II, o Pacífico, por certo, não hesitou em desautorizar o bispo D. António, e a Lomba da Maia, sob a jurisdição paroquial da Maia, não chegaria a ser paróquia porque o rei quisera acautelar a integridade dos rendimentos dos párocos da Maia."[1]

Hoje somos vizinhos nesta autonomia democrática e temos de esquecer as rivalidades ancestrais para crescermos em conjunto e não de costas voltadas. Se a Maia está mais voltada para o mar e a Lomba para as vacas, temos de aproveitar essas diferenças para incrementar as nossas potencialidades de atrair turismo para ambas as valências, oferecendo a nossa imensa hospitalidade, gastronomia, os nossos montes e mares pois poderá estar aí o nosso crescimento económico e a solução para o desemprego crescente que já começa a ameaçar a estrutura familiar das nossas gentes. Saibamos aproveitar as semelhanças em vez de realçar as diferenças pois na união está a nossa força. Aqui, na Maia e na Lomba, somos diferentes, somos da costa norte. Não nos importa que a costa sul nos esqueça. Temos enorme orgulho nos nossos mares agrestes, nos nossos ventos mata-vacas e temos a dignidade de cinco séculos de história e de trabalho árduo com a memória da pesca, do linho, do tabaco e das telhas. Esta é a mensagem final que entenderão bem melhor se lerem ChrónicAçores. Bem hajam pela vossa paciência para me ouvirem pois vou terminar lendo o único texto em que uso termos típicos das nossas nove ilhas.

 

1.1. CONVERSAS DO ALÉM

Há tempos ficara menente quando lhe disseram que um falecido, na vizinha Lombinha da Maia, pedira para ser enterrado com o seu inseparável telemóvel. O homem sem pitafe2 algum viera da Amerca3, ali da antiga Calafona4, e queria estar contactável mesmo para lá do grande túnel luminoso.

Qual não foi o espanto, num alpardusco5 de camarça6, ao transitar pelo cemitério já encerrado a visitas, e ver três pessoas do lado de fora das grades do cemitério falando com alguém e usando os seus telemóveis ou celulares bem encostados ao ouvido. Uma delas, tinha uma mão nas grades e na outra segurava o aparelho.

Não tinha tarelo7 nenhum. Não querendo ser lambeta8, interrogava-se “Estaria a falar com o falecido, que nascera empelicado9?” Será que o finado atendeu do lado de lá dentro do seu caixão de mogno envolto na “Stars and Stripes” à prova de leiva10 ou continuaria na sua eterna Madorna11? Teria acendido um palhito12 para ver quem lhe ligava? De que falariam? Que mexericos trocavam? Lamentar-se-iam da falta que lhes fazia ou estariam a queixar-se da carestia de vida? Que palavras trocariam que não tivessem já comunicado? Que faltara dizer? Estariam a queixar-se da sorte caipora13 dos herdeiros ou a culpá-lo pela caltraçada14criada pelo inexistente testamento? Teriam sido vizinhos de ao pé da porta15? Falariam do gado alfeiro16 sem touro de cobrição? Talvez dum derriço duma filha numa constante arredouça17, às fiúzes18 do namorado da cidade? JC ia ficar a nove19 mas tratando-se de gente rural podia augurar que os vaqueiros se preocupassem mais com subsídios e vacas.

Não devem escalar grandes cumes culturais ou espirituais. Pressupunha ser esse o jaez da conversação. Não se crê que pedissem aconselhamento para as eleições legislativas dali a seis semanas nem tampouco lamentassem a falta delas. Quem sabe que lastimavam? Falariam, talvez, de mordomos, impérios e festas que isso, sim, seria assunto da maior relevância local, que o melhor da festa é esperar por ela, mas mais apropriado para se discutir à mesa, sem ninguém a atramoçar20, com uns calzins21de abafado22 até se ficar meio piteiro23.

Uma pessoa interroga-se sobre a possibilidade de duração infinita das baterias do aparelho no esquife. Seria a solução para tantos escritores e outros que se separam dos leitores sem tempo de dizerem um último adeus, escreverem a última frase de um livro, acenarem com um novo projeto ou retificarem qualquer coisinha. Seria a forma inédita de poderem continuar a comunicar com aqueles que ficam facilmente órfãos de autores que os acompanharam nesta digressão terrena.

 Admira-se que as companhias de telecomunicação não tenham inventado uma bateria de longa duração que não precise de ser carregada debaixo de terra e permita acesso ilimitado, a troco de uma conveniente taxa vitalícia, aos que os deixaram já no meio duma amizade, dum amor, duma relação, duma paixão. Seria, decerto, um êxito comercial se viesse com a possibilidade de personalização do aparelho. Quem sabe o que se evitaria de dores incompletas, de saudades por mitigar, de conversas inacabadas? Novos planos poderiam surgir em operadoras de telemóveis. Um tema a merecer estudos futuros…

(texto revisto por e dedicado ao Dr. J. M. Soares de Barcelos, autor de Dicionário dos Falares dos Açores (ed. Almedina 2008), por me fazer sentir menos estrangeiro

  1. 1Menente, espantado, estupefacto (São Miguel)

2  Pitafe, defeito, atribuído quer a pessoas, quer a objetos. Nódoa na reputação.

3  Amerca, corruptela de América, ou Nova Inglaterra por oposição ao outro grande polo de emigração, a Califórnia

4  Calafona, Califórnia, na estropiação dos emigrantes de antigamente

5 Alpardusco, o mesmo que alpardo, crepúsculo, lusco-fusco (São Miguel)

6 Camarça, tempo húmido (São Miguel)

7 Tarelo, juízo, tino (São Miguel)

8 Lambeta, intrometido (São Jorge)

9 Empelicado, diz-se de pessoa afortunada, usado na frase nascer empelicado (Terceira)

10 Leiva, designação dada a formações de musgo de várias espécies Sphagnum, abundante na parte alta das ilhas. No Corvo é o musgo, nas Flores musgão, no Faial tufos. Nome da urze, Calluna vulgaris, usada em S. Miguel na preparação do solo das estufas dos ananases.

11 Madorna, sono leve, sonolência, torpor

  1. 12Palhito, o mesmo que fósforo (Terceira)
  2. 13Caipora, de qualidade inferior, reles. Sorte caipora: que pouca sorte, sorte maldita (São Miguel)
  3. 14Caltraçada, confusão, mixórdia, trapalhada
  4. 15Vizinho do pé da porta, o mesmo que vizinho do portal da porta, que mora nas redondezas de uma casa (vizinho de ao pé da porta em São Miguel)
  5. 16Alfeiro, gado bovino que não dá leite, por exemplo de uma vaca que não apanhou boi, e que, por isso, não dá leite. Gado alfeiro sem touro de cobrição (in Cristóvão de Aguiar)
  6. 17Arredouça, confusão, desordem
  7. 18Fiúzes (São Miguel) ou Às fiúzas de, àcusta de, viver à custa de outrem (Terceira)
  8. 19Ficar a nove, não entender nada do que ouviu.
  9. 20Atramoçar, aborrecer, interferir com, maçar (in Cristóvão de Aguiar) (São Miguel)
  10. 21Calzins, pequeno copo, geralmente destinado a beber aguardente ou bebidas finas
  11. 22Abafado, O vinho abafado é um vinho tradicional dos Açores, constituindo uma tradição na costa norte de São Miguel, onde a abundância de pomares e a produção frutícola excedentária é frequentemente aproveitada para a feitura de licores, vinhos abafados e compotas. No caso dos vinhos abafados, trata-se de um género vinícola com elevado teor alcoólico cuja fermentação é interrompida através da adição de aguardente ou álcool, permanecendo mais ou menos doce (uma vez que o açúcar natural da uva não se transformou em álcool). Transformação licorosa do típico vinho de cheiro micaelense, o abafado é considerado o vinho do Porto dos Açores, em resultado de um processo de laboração que dispensa o recurso a corantes ou conservantes. (São

24 Piteiro, aquele que bebe muito (Terceira, Flores

fotos em images/stories/videos/chronicaçores maia 1 julho 2014.pdf 

 

[1] (in Mário Moura: a criação de uma paróquia")

XXXIV Colóquio

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